Nos dias que correm qualquer jovem munido de mini-sistema de gravação e software de criação de beats pode criar o seu próprio discurso sobre a sua vida e o seu bairro, ou, nos melhores casos, sobre a vida social e política. Seguindo-se à cena internacional, em Cabo Verde, o discurso rap urbano que, praticamente, incorpora a atitude dos jovens invadiu os mass media e os assuntos nele presentes não diferem muito um do outro. Já houve, porém, propostas interessantes como as do agrupamento «Rapaz 100 Juiz», Expavi e, muito recentemente, a de Batchart. Ressalve-se que numa sociedade mediatizada a criação de valor deveria ser uma constante sob pena de cairmos na entropia e embasbacamento.
E de notar que, entre aquilo que é vivido nas comunidades por esses jovens e o que transparece na arte há uma distância. Essa distância tende a abolir-se em «benefício exclusivo do modelo», como defende Baudrillard (1991), criando uma terceira e nova categoria de simulacro com base na hiper-realidade: o simulacro da simulação, ou seja, «(…) os modelos já não constituem uma transcendência ou uma projecção ; já não constituem um imaginário relativamente ao real, são eles próprios antecipação do real (…)» (Baudrillard, 1991: 152). Convém lembrar, aqui, que o som dos tiros de armas de fogo nas gravações da Death Row Records sobretudo as de 2PAC, não só tinham o intuito de arte como o de incitamento à violência e ao crime. O assassinato de 2Pac e o ferimento de Suge Khight naquela fatídica noite em Los Angeles, no ano de 1996, foi apenas o culminar e coroar de um fenómeno de proporções dantescas. Esse epicentro histórico na comunidade hip hop afro-americana constitui o modelo «cibernético» ao qual os jovens, pelo mundo fora, se atêm, perpetuando uma prática que, na origem, tinha motivações díspares e contextualizadas. Como modelo a imitar sobrevive menos o «2Pac poeta» do que o «2Pac gangster» e, de uma certa forma, estar entre a criminalidade e a criatividade é intuir uma ou outra dominante do fenómeno 2Pac.
Os jovens que estão no esteio desse discurso hip hop constituem uma comunidade imaginada que esbarra na cultura nacional que também tem a sua comunidade imaginada. Hall (2006: 52-56) discorrendo sobre a questão da identidade cultural, no contexto da pós-modernidade, e num capítulo dedicado as culturas nacionais como comunidades imaginadas, identifica 5 grandes narrativas culturais: em primeiro lugar, a narrativa da nação, ou seja, aquilo que diz a história e literatura nacional, tal como a história da independência nacional e do dealbar da democracia; em segundo lugar, a narrativa que assenta as suas bases na tradição e intemporalidade e no incessantemente vivido, como aquelas pequenas coisas que nos tornam efectivamente crioulos cabo-verdianos (e não europeu ou africano): em terceiro lugar, as narrativas baseadas nas ritualizações e tradições inventadas como a banderona ou tabanka; em quarto lugar, a do mito fundacional, isto é, uma narrativa que aponta para as origens da nação, como o mito das Hespérides; por último, a narrativa cultural que reivindica a pureza e originalidade do folclore nacional sem paralelo em outras paragens, como a nossa morna, por exemplo. Nesta perspectiva, o discurso hip hop urbano aparece como a modernidade que confronta as referidas narrativas e que surge do impacto da última fase da globalização sobre as identidades nacionais. Segundo Hall (2006) uma das características dessa modernidade é a «compressão espaço-tempo» que constitui «a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre as pessoas e lugares situados a uma grande distância» (Hall, 2006:69). Os sistemas de representação que surgem no seio dessa modernidade constituem, para o autor, o ónus da questão, uma vez que a sua configuração e reconfiguração «têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas». Os jovens munidos de um ipod ou de um ipad constroem o seu imaginário moderno, com base nos filmes, videoclips e canções internacionais de moda, mas as suas culturas autóctones concretas fazem apelos a uma parte diferente da sua identidade própria. É nesse pêndulo entre a tradição e a modernidade que emerge a criatividade nos jovens. Neste particular, o autor considera o retorno ao local e ao étnico, um dos aspectos da pos-modernidade. O trabalho artístico de grupos teatrais recentes têm ensaiado esse retorno ao étnico e dessa tendência destaca-se nas obras de João Pereira (Tikai) e de Gil Moreira que recorrem, inteligentemente, ao audiovisual para sustentar o seu ímpeto criativo.
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