No capítulo que ora analisamos, Quintana começa por equacionar a questão da presença do acaso como signo do real[1] a partir do pensamento de Eric Rohmer sobre o cinema, no qual este defende que, na relação essencial que a imagem cinematográfica estabelece com a lógica do mundo, o cinema é aquela que, de entre as artes representativas, possui a força necessária para captar “o instante significante, esse momento en el que el orden de las cosas puede llegar a ser alterado”(Quintana, 2003: 210). Para esclarecer a posição estética de Rohmer, o autor contrapõe-lhe a figura do demiurgo[2] que constrói um universo fechado, alheio ao mundo real, advogando que, na perspectiva deste cineasta, o cinema não pode ser tomada como deus ex-machina mas, sim, abrir-se ao aleatório para que esse “instante significante” possa ser resgatado. Desse modo, cada palavra dita e cada imagem reproduzida remete para um segundo instante que carrega uma nova significação. Essa posição estética de Eric Rohmer é exemplificada pelo autor ao recorrer à uma conversa que o cineasta francês manteve com o ensaísta Jean Douchet e que fora reproduzida na série Cinéastes de nôtre temps,, dedicada à sua obra, por André S. Labarthe, na qual Rohmer assevera que a palavra deve ser produzida no ecrã com a máxima nitidez e que não suporta música de fundo. Esta espécie de contacto com o natural que o cinema mantém com o real induz no espectador uma «releitura da imagem», pela sua propensão natural em reinterpretar culturalmente tudo o que está a vista, provocando um segundo sentido, algo que o demiurgo busca, em esforço, encerrar numa quadratura significante.
Apesar de, em nenhum momento o autor esclarecer se essa presença do acaso é aquela que se verifica a nível dos documentários, sobretudo com o advento do cine verité, ou se é a simples intrusão de elementos do real numa cena planificada de um dado filme ficcional, o conceito de acaso, strictu sensu, aparece-nos, clarificada, mais adiante na sua obra, sob uma nova roupagem sendo, segundo ele, o mesmo fenómeno que se estabelece na música jazz,, que traz o improviso à arte e enriquece a estrutura melódica. Deste modo, o acaso é assumido como sendo tudo aquilo que foge aos princípios de qualquer planificação e de pauta e, neste particular, o autor sublinha na seguinte passagem:
«(…) de todos los medios de expresión artística el cine es, sin embargo, el que aparece más abierto al azar» (Quintana, 2003:213).
[1] Quintana atribui esse substracto teórico ao cinema de Michelangelo Antonioni, especificamente, no filme Blow Up (1967) em que no meio dos pixéis de uma fotografia ampliada do repórter se descobre o corpo de um homem morto por detrás de um casal beijando-se, abrindo-se este (a)caso ao mistério. Essa função reveladora do mistério que o acaso possui foi objecto de análise num dos textos programáticos que Antonióni escreveu em 1942 quando era crítico da revista Cinéma, num texto em que este estabelece uma relação entre o cinema e a pintura, considerando ambas artes figurativas cuja única condição é o de se abrirem à interioridade, ou seja, de serem dados que nos oferecem a visibilidade das coisas.
[2] Na mitologia demiurgo é um deus que se introduz no caos revertendo-o em cosmo.
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