Da literatura provém uma dimensão do nosso imaginário, naturalmente, associado aos Claridosos, que assentaram as bases sociológicas e antropológicas da cabo-verdianidade. Depois de séculos sob a «sombra» literária-ontológica-socializante do colonialismo português, emerge o homem cabo-verdiano na sua insigne figura, destacando-se do fundo politico-social que lhe é demarcado do ultramar. Essa figura é a dos próprios Claridosos, na sua atitude e no seu modo de escrita, mais visível na adopção que se fez do crioulo como possibilidade poética e existencialista. Um fenómeno idêntico a esse período áureo da cabo-verdianidade (que despontara em Eugénio Tavares) está ainda por nascer na ficção cinematográfica, tanto a nível das adaptações como a nível das criações originais, portanto, ainda muito longe de se constituir como alternativa, enquanto “imaginação produtora”, dada a inexistência de indústria audiovisual e cinematográfica no país . De ressalvar, que toda a História das imagens em movimento foi marcada por rupturas e revoluções que ocorreram, logo, com a invenção do cinema. Logo cedo, criadores como D.W. Griffith estruturaram, de imediato, uma linguagem para todo o imaginário yankee que já existia na literatura norte-americana.
Muito do que se produz e se produziu na literatura cabo-verdiana (claridosa e pos-claridosa) contem em si uma técnica de conversação que parece ter sido retirada dos serões da tarde, de figuras eminentes da cena social cabo-verdiana. Na nossa cultura adoptou-se esse universo representacional do quotidiano e da vizinhança, essa espécie de falar manso, despreocupado e com tendência para a evasão. Toda a literatura cabo-verdiana, desde os claridosos, encontra-se impregnada dessa veia conversacional, salvo os que estão embevecidos na prática de intertextualidades ou um ou outro que anda entretido em afogar-se em algum mal-estar existencialista. Existe uma outra variante do “imaginário” cabo-verdiano que nos é despertado pela textura da voz celestial de Cesária Évora, pela dimensão onírica das suas canções, que leva a que se busque, a partir delas, o referente possível em imagens, obtidas de paisagens naturais, das ruas e noites de Mindelo, em efeitos visuais que expressam sonhos e prazeres hedonistas. Os seus clips musicais, que fazem parte das produções de bom orçamento, que já estamos habituados a ver em projectos musicais internacionais, incidem, na sua maioria, nos aspectos naturais e desprendidos da arte da Cize, isto é, da sua forma de ser e de estar. Num país essencialmente musical, o imaginário das ilhas e o seu natural desejo de representação, encontra, evidentemente, o seu depositário nas canções e nos vídeo clips dos grandes músicos cabo-verdianos. Assistiu-se, nos últimos anos, às melhorias substanciais no tratamento, ao nível da fotografia, da encenação dos desejos, e dos grandes arquétipos cabo-verdianos como a estiagem e as secas, as encostas das ilhas, o mar, a velhice e a saudade. A ruptura, facilmente dedutível desta realidade, seria, então, a capacidade de “transcodificarmos” a linguagem desse universo sensual da música, de reproduzir as falas, na sua natureza sã e reivindicativa, algo que não suscite apenas uma vaga comoção, mas a certeza de uma identidade construída.
Esse imaginário que deve sair das vivencias quotidianas da camada jovem, plena de ritmo e estilos diferenciados, não tem ainda plena expressão no contexto de criação audiovisual e cinematográfica nacional. Tornou-se necessário restituir à ficção o seu papel de construtor de realidades, e ao activismo artístico e cultural o seu verdadeiro espaço, face à uma cultura televisiva com tendência para a hipocrisia e o grotesco.
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