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quinta-feira, novembro 09, 2006

O Chapéu do Mr. Cury.



No meu «gabinete pessoal» Mr. Cury contava-me algumas coisas. Tinha um programa radiofónico numa das estações de rádio da cidade onde falava do mundo do cinema e queria transforma-lo numa autêntica obra de arte sonora. Uitilizava no programa partituras sonoras de filmes e uma narração livre intercalada com ofertas musicais ecléticas, desde o jazz até ao pós-punk, passando pela soul music. «O programa tentou inspirar-se na Invasão dos Marcianos de Orson Welles ». «No universo radiofónico da cidade parecia um OVNI». As críticas foram duras: pessoas que diziam que aquilo não era comunicação radiofónica; outros rejeitavam-no por causa da voz esganiçada do apresentador. Houve ainda aqueles que simplesmente perguntavam «Mas quem é Ele»? Agora que o tempo passou Mr. Cury tomou a liberdade de fazer a sua autocrítica: tratou-se simplesmente de provocar uma dilatação auditiva e uma expansão da consciência no ouvinte. Se isso aconteceu, não faço a mínima ideia.




Um ano antes Mr. Cury resolveu fazer um engenho de música e som na única televisão da cidade distinguindo o seu programa do resto dos outros programas da televisão. O programa até nem era, por causa do seu tema, algo em que se possa dar ao luxo de fazer experimentações. A forma foi alterada para parecer algo mais moderno. Alguem disse tratar-se de uma montagem intelectual, outro uma barulheira que se distraiu do seu conteúdo. Agora ele toma a liberdade de fazer a sua autocrítica: «tratou-se de um puro divertimento e experimentalismo, mas com conteúdos muito sérios. Lembram-se daquele provérbio que diz: um adulto deve trabalhar com a seriedade com que uma criança brinca.»?




Nesse mesmo ano, Mr Cury resolveu fazer um documentário sobre um grupo de jovens que se drogavam e cantavam rap: «leva-los ao último reduto para ao mesmo tempo dar-lhes uma oportunidade de expressar o porquê das suas vidas». Estes jovens eram autênticos outsiders e ele na altura também se sentia assim. Mr Cury pensou: porque não fazê-los expressarem-se? porque não provocar um pouco as hostes sociais para que os vejam deste lado da barreira? O documentário foi completamente ignorado. Porquê, Mr Cury? : «Porque nela havia uma poesia maldita que se comprazia na sua própria autodestruição. Filmada ao jeito de Super8mm numa Camcorder DVC Pro, pareceu aos olhos dos funcionários da Imagem uma perfeita heresia». As pessoas, as poucas que o viram, acharam-no fixe... o que quer que isso signifique. Mas eu...eu...(suspiro) posso garantir que Charles Baudelaire adoraria vê-lo».




Mr. Cury anda agora a equacionar a sua próxima experiência sonora e visual revisitando o seu próprio silêncio. Como é que isso é? «O silêncio é uma das matérias mais fascinantes que conheço. Ele pode ser proporcional aos meios sociais - desde a barulheira do mercado até aos catedrais e museus, passando por escritórios absurdamente mudos. Ele está nas pequenas coisas, triviais, como por exemplo ao abrir um frigorífico percebemos que ele está aí e nos sussura». Não sera preciso uma vida inteira e mais alguns suspiros para se realizar um projecto assim, Mr Cury? . «Alguns suspiros talvez. Já o tenho mentalmente visionado» - diz isso enquanto acaricia, entre as mãos, o seu chapéu. Leva-o solenemente á cabeça, inclina-a um pouco. Despede-se com uma única palavra «Cidadão». Ao sair, pareceu-me, nesse instante, um homem público do sec. XIX.

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