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quinta-feira, junho 16, 2011

FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA CABOVERDEANA (3)

Cena do filme «Ilhéu de Contenda» de Leão Lopes


Da literatura provém uma dimensão do nosso imaginário, naturalmente, associado aos Claridosos, que assentaram as bases sociológicas e antropológicas da cabo-verdianidade. Depois de séculos sob a «sombra» literária-ontológica-socializante do colonialismo português, emerge o homem cabo-verdiano na sua insigne figura, destacando-se do fundo politico-social que lhe é demarcado do ultramar. Essa figura é a dos próprios Claridosos, na sua atitude e no seu modo de escrita, mais visível na adopção que se fez do crioulo como possibilidade poética e existencialista. Um fenómeno idêntico a esse período áureo da cabo-verdianidade (que despontara em Eugénio Tavares) está ainda por nascer na ficção cinematográfica, tanto a nível das adaptações como a nível das criações originais, portanto, ainda muito longe de se constituir como alternativa, enquanto “imaginação produtora”, dada a inexistência de indústria audiovisual e cinematográfica no país . De ressalvar, que toda a História das imagens em movimento foi marcada por rupturas e revoluções que ocorreram, logo, com a invenção do cinema. Logo cedo, criadores como D.W. Griffith estruturaram, de imediato, uma linguagem para todo o imaginário yankee que já existia na literatura norte-americana.

Muito do que se produz e se produziu na literatura cabo-verdiana (claridosa e pos-claridosa) contem em si uma técnica de conversação que parece ter sido retirada dos serões da tarde, de figuras eminentes da cena social cabo-verdiana. Na nossa cultura adoptou-se esse universo representacional do quotidiano e da vizinhança, essa espécie de falar manso, despreocupado e com tendência para a evasão. Toda a literatura cabo-verdiana, desde os claridosos, encontra-se impregnada dessa veia conversacional, salvo os que estão embevecidos na prática de intertextualidades ou um ou outro que anda entretido em afogar-se em algum mal-estar existencialista. Existe uma outra variante do “imaginário” cabo-verdiano que nos é despertado pela textura da voz celestial de Cesária Évora, pela dimensão onírica das suas canções, que leva a que se busque, a partir delas, o referente possível em imagens, obtidas de paisagens naturais, das ruas e noites de Mindelo, em efeitos visuais que expressam sonhos e prazeres hedonistas. Os seus clips musicais, que fazem parte das produções de bom orçamento, que já estamos habituados a ver em projectos musicais internacionais, incidem, na sua maioria, nos aspectos naturais e desprendidos da arte da Cize, isto é, da sua forma de ser e de estar. Num país essencialmente musical, o imaginário das ilhas e o seu natural desejo de representação, encontra, evidentemente, o seu depositário nas canções e nos vídeo clips dos grandes músicos cabo-verdianos. Assistiu-se, nos últimos anos, às melhorias substanciais no tratamento, ao nível da fotografia, da encenação dos desejos, e dos grandes arquétipos cabo-verdianos como a estiagem e as secas, as encostas das ilhas, o mar, a velhice e a saudade. A ruptura, facilmente dedutível desta realidade, seria, então, a capacidade de “transcodificarmos” a linguagem desse universo sensual da música, de reproduzir as falas, na sua natureza sã e reivindicativa, algo que não suscite apenas uma vaga comoção, mas a certeza de uma identidade construída.

Esse imaginário que deve sair das vivencias quotidianas da camada jovem, plena de ritmo e estilos diferenciados, não tem ainda plena expressão no contexto de criação audiovisual e cinematográfica nacional. Tornou-se necessário restituir à ficção o seu papel de construtor de realidades, e ao activismo artístico e cultural o seu verdadeiro espaço, face à uma cultura televisiva com tendência para a hipocrisia e o grotesco.

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